sábado, 19 de junho de 2010

#5

Já foi o tempo em que o La Flor de La Canela era um bom lugar para fazer amigos. Deixamos de bater cartão lá depois que virou um antro de jovens pseudo-poetas de esquerda, filósofos punheteiros e drogaditos pedindo dinheiro emprestado pra comprar pó. Queríamos novos ares! E seria aquela noite que nós quatro encontraríamos um novo bunker, uma nova segunda casa. O lugar era perto da Rua Carmen e foi indicado pelo Urbano, meu ex-vizinho de alojamento e colega na licenciatura. Eu sabia que o bar ficava duas ruas pra cima da Alameda, ou talvez três. Ou mesmo em alguma rua perpendicular à avenida.  Não lembro exatamente a época do ano. Provavelmente era junho, tinha o frio e a textura da sua jaqueta de brim nos meus dedos. Entre nós, o assunto era o fim do mundo. Algum meteoro ia atingir a Terra naquela próxima semana de 1999 e tudo seria ou fodido pelo tal ou engolido por uma onda gigante. A situação era de pânico descontraído, isso eu lembro. Tudo era motivo pra se fazer piada. Marcamos um ponto de encontro no limbo, caso o prenúncio se concretizasse. No fundo, aquela história toda me botava nervosa. Ria das piadas, mas de medo. Não gostava de pensar nesse tal dia. Imaginava minha mãe sendo dragada pelo recuo de uma onda gigante. O mar levando embora minha mãe e todos os meus livros junto. Um mar de livros e de mãe afogadas. Acho engraçado como o tempo muda a dinâmica das coisas. Quando nos conhecemos no último ano do ginásio não tínhamos nada em comum. E agora estávamos lá, os dois casais de namorados procurando um lugar pra viver aventuras em comum. E bem agora vinha essa tal onda pra destruir tudo. Paramos em frente a feira de artigos indígenas para atravessar a avenida e fiquei pensando que a onda levaria aquilo tudo embora também. As penas todas, os gorros de lã de ovelha, as pedras azuis com cara de índio.  Tudo se juntaria com o mar de mães e livros molhados. Percebi que não lembrava se a passarela de pedestres ficava a duas quadras pra direita ou pra esquerda. Sabia que era perto do prédio do Arquivo Nacional, mas na verdade não conseguia pensar em mais nada. Pensava que meu sapato não tinha salto nenhum e logo a água chegaria aos meus pés. Minha mãe sempre falava que uma mulher só é uma mulher quando de salto e maquiagem, mas nunca levei a sério. E pra que pintar a cara se logo mais aquela água toda estaria por ali, só poderia estar. Não era possível que a onda viesse de uma vez só. Já devia estar a caminho e pegaria a gente antes de acharmos o bar. Eu já não ouvia mais nada da conversa. Pensei em ligar pra casa, perguntar pra minha mãe se ela sabia nadar. Talvez soubesse, ela cresceu perto de uma barragem do Maipo na época em que era um rio que se podia entrar. Achei melhor tirar a dúvida e te pedi o celular emprestado. Expliquei que precisava falar com minha mãe, que era urgente e você me olhou com aquela cara comprida de reprovação. E a Dona Marina sabe onde fica o tal bar?, você me perguntou debochando. Eu não queria te contrariar, nunca quis, nem nunca soube como. Mas precisava ter certeza que ela sabia nadar. Caso não soubesse, talvez a mãe conseguisse se manter boiando em cima do sofá da sala. Era isso, se agarrar ao sofá. Ia avisar também que era importante ela bater os pés, pra pelo menos conseguir sair do lugar quando já estivesse em alto mar e não ser atingida pelas réplicas das ondas. O telefone tocou seis vezes. Na segunda tentativa, mais sete e caiu na caixa postal. Liguei de novo e deu ocupado. Tive certeza, já era tarde. No fundo daquele sinal de ocupado eu conseguia ouvir o barulho das ondas reverberando. A água entrando pelo telefone. Achei que o melhor a fazer era jogar seu celular longe, tentar impedir aquele desastre. Arremessei o mais forte que pude antes que aquele mar todo chegasse por ali. Aí você me agarrou pelo ombro, me chamou de estúpida e mandou eu me foder. Olhou bem pra minha cara enquanto repetia o quanto eu era estúpida e descontrolada. E eu vi que do fundo dos teus olhos duros a onda gigante já tinha chegado. Seus olhos boiavam num mar de páginas soltas, mulheres mortas e artesanatos indígenas e por mais que você me humilhasse ali na frente dos nossos amigos, eu vi que o fim estava próximo. Agarrei no seu braço, na sua jaqueta de brim que me doía nos dedos e não consegui te falar nada antes da morte anunciada, nem um adeus. Andávamos rápido, porque o fim estava perto.  Eu apertava seu braço e chorava por dentro. Chorei tanto por dentro que  morri afogada e você não percebeu. Nunca percebeu.

terça-feira, 15 de junho de 2010

#4

Terceiro dia que nos encontrávamos fingindo que era por acaso. Entre nós pairava uma nuvem de intimidade e só era o terceiro dia. Nessa cena, na qual éramos atores e público, eu fazia o papel de um fumante compulsivo e ele de um barbeiro que estava ao telefone com a namorada. Quando a namorava desligava, depois de muitos desliga-você-primeiro, ele me perguntava o que eu queria e qual era meu nome. Eu poderia mentir, falar qualquer outro, mas eu respondia o meu nome primeiro. Com o devido cuidado soletrei as letras, primeiro o jota de jibóia. Ele não entendeu nada, pediu pra eu repetir, enquanto eu pensava que o jota poderia ser de janela e não de jibóia. Isso deixava as coisas claras demais. Em retaliação à ignorância dele ou a falta de audição e tato, não quis saber o seu nome.

#3

Não sabia muito o que ele queria comigo. Tínhamos poucas coisas em comum. Estudamos na mesma universidade e ele conhecia meu namorado. Conversamos sobre peças de teatro ou filmes que estavam em cartaz, já que ele sabia que eu era atriz. Eu me dizia atriz, mas no fundo mal conseguia me ser – quanto mais ser outras. Lembro que o telefone tocou e eu não reconheci o número. Depois de algumas charadas e jogos de palavras soube que era ele, me convidava para uma sessão de cinema aquela noite. Topei sem cerimônias, às sete horas em frente ao mate. Entre a gente não existia tensão sexual por vários motivos. O interesse dele em mim era outro, algo que eu não dominava bem e me botava curiosa. Cheguei antes do combinado e ele já estava lá. Aparentava mais magro que dá ultima vez, com os cabelos meio grandes demais. Estava acompanhado de um tipo indefinido. Nem alto, nem baixo, barba rala, olhos pequenos parecendo duas poças d’água suja. Lembro que a testa dele brilhava, refletia o luminoso da fachada da loja. Era cedo demais pra entrar na sala e decidimos comer alguma coisa. Pedi uma água tônica, expliquei que era por causa de uma azia insistente. Aquele que era mais meu amigo deu uma risada, investigou a minha azia e todos meus problemas gastrointestinais. Perguntou o porquê de não ter trazido meu namorado ao cinema e como estava nossa vida amorosa, se transávamos muito ou se atores gostavam das coisas só no palco. O outro rapaz observava e sorria muito, tentando participar da conversa. Talvez ele achasse engraçada a intromissão do seu amigo na minha vida. Será que eles eram amigos ou primos, irmãos? Não lembro. O que eu lembro é que em algum momento – o único espontâneo naquela noite - o rapaz de olhos sujos tomou um ar, pediu licença e virou o meu rosto de perfil. Ficou me olhando e perguntou pro companheiro: lembra aquele filme que vimos semana passada, estrangeiro... Qual era o nome daquela atriz mesmo? E o outro, aquele que eu julgava um pouco amigo, não respondeu nada. Sua boca sequer abriu, não saiu um A, um ar, nada. Só sabia me olhar e não dizer nada. Aqueles cinco segundos duraram muitos, e, antes de tudo ficar mais constrangedor, mudei de assunto, falei para nos apressarmos para o filme. Mas o que eu ia falar não era bem isso, era outra coisa.

#2

Era uma segunda-feira de carnaval estranha de um ano parecido. A última alternativa era estar com ele entre pessoas desconhecidas. Um quarto de casa grande em uma cidade cinza com nome de índio. Pessoas se divertindo ou acreditando estarem se divertindo. Às vezes se ouvia algum sussurro, uma reclamação entre os dentes batendo no copo de vidro. Algo sobre a música alta ou mosquitos. Naquela noite, no quintal sem iluminação, ele perguntou sobre a minha vida – quem sabe por curiosidade ou protocolo. Disse que eu estava morto e seco por dentro, terreno agreste, mas tentaria manter a normalidade, seria simpático ali naquele lugar inóspito. Me fantasiar de algo até o dia de cinzas. Lá longe, a única luz de um poste de rua coroava a cabeça dele. Um cristo que pesava a minha resposta. Talvez ele me absolvesse, indicasse alguma simpatia, um xarope ou apertasse a minha mão. Mas me deu um sorriso sincero com todos os dentes possíveis onde era possível ler: você não sabe nada da vida. No dia seguinte acordei e ele tinha partido depois de algumas ligações. Nunca mais nos encontramos.

#1


Teve o dia em que fui te conhecer. Na verdade não era isso, era outra coisa. Já tínhamos nos visto uma vez de forma muito breve, coisa de cinco minutos. Lembro bem, você parecia feliz apoiado em um peito que parecia seu. Acariciando um braço que te era muito familiar. Mesmo que naquela época eu desgostasse da felicidade dos outros, teu sorriso não me incomodou. Quando declaramos os interesses, acordei mais cedo para comprar uma camisa nova. Aquela ocasião, aquilo que parecia um passo adiante, não mais pros lados nem para trás, pedia uma camisa nova. Ali, no nosso encontro, mesmo antes dos cumprimentos e gracejos, você me mediu com os olhos de ponta a ponta. Comentou sobre a barba que me caia bem e percebi que algo em mim não te agradava. Não podia ser a camisa nova, imaculada demais de qualquer coisa que fosse. Na hora pensei: são os meus joelhos. Eles eram escuros demais, chamavam a atenção numa bermuda um pouco curta e te ofendiam. Você tentava disfarçar com a boca o que dizia com os olhos embotados - só podiam ser os meus joelhos. Enquanto decidíamos o que fazer daquelas horas, talvez você tenha descoberto que a culpa dos joelhos escuros era minha e não da natureza. Talvez naquele momento você descobriu que eles eram escuros por conta das noites que passei ajoelhado rezando e pedindo para que aqueles momentos nunca mais se repetissem.