domingo, 24 de abril de 2011

#9

Talvez você não saiba, mas quando dormíamos juntos eu acordava de repente no meio da madrugada. A essa hora, o céu ainda era laranja, com prédios, a serra e um manto cobrindo eles como um recorte de papel. Eu abria os olhos quase sempre no mesmo horário (três, três e meia) sem precisar de artifícios despertadores e ficava olhando de perto o teu corpo desacordado, desprovido de alma. 
Gostava de ver você quieto, vazio, longe do turbilhão de coisas que você era (talvez ainda seja). Só eu te assistia naquele estado de vigília, onde você se tornava o que eu quisesse. Dormindo, você podia ser quem eu gostaria e eu, ser tua.
Com o tempo e os costumes, as noites desperta tomaram forma e métodos. Eu acordava e procurava o teu rosto. Observava se o sono era profundo demais, se roncava, se era um barulho alto ou baixo, se estava de boca aberta e para qual lado estava. Com o sono pesado, pegava tua mão, apertava teu pulso e sussurrava algumas perguntas (minha mãe falava que isso funcionava, fazia as pessoas falarem verdades), mas nada.
Tentava me mexer na cama sem muito alarde, como se estivesse mudando de posição. Secretamente, desejava que os solavancos do colchão te acordassem e você percebesse que eu estava ao lado, te esperando. Ou então, sem querer, colocasse o braço por cima de mim – mesmo que não fosse necessariamente desejado. Teve uma noite em que você virou de bruços e meu braço ficou prensado junto ao teu, embaixo da sua barriga. E fiquei ali te sentindo até meu braço formigar, faltar sangue e perder a sensibilidade. 
Não sei muito como as coisas se deram depois disso, depois das atenções aos teus sonos e um pouco antes de tomarmos rumos diferentes. Mas lembro que teve uma noite, uma visita à casa de amigos, lembro bem. Era um jantar informal, a mesa desmontável colocada na sala pra acomodar os dois casais. Horas comendo, enchendo copos, eles falando dos planos para a casa nova, eu falando dos nossos planos. Com tudo terminado, as mulheres levantaram pra tirar da mesa e depois sentamos nos sofás, um casal em cada. Enquanto eu contava sobre a proximidade das nossas férias, você passou o braço pela minha cintura, encostando a cabeça no meu ombro. Não lembro como, nem das palavras certas, mas tive que me concentrar para terminar as frases certas, pra não me perder. Aquilo, aquele afago dado na frente dos outros, era um algo pelo qual eu passava noites acordada esperando. Maravilhada, sorrindo por dentro, respirei entre as palavras e sem querer troquei o nome dos destinos. O teu abraço, o gesto tão querido, me fez transpor terras, colocar uma cidade uruguaia no Chile ou qualquer outro lugar, não lembro.
Mais tarde, com as despedidas todas, eles nos levaram até a portaria do prédio. Desejamos boa sorte no cenário novo (novos ruídos), nos desejaram boa viagem. Ainda na rua, você levava o braço posado na minha cintura. Viramos aos amigos para dar um último aceno e, na volta, tua mão me ignorou, desceu ladeando o meu corpo, e entrou direto no bolso na tua jaqueta - e eu sabia que seria aquilo. Peguei no teu braço, teu pulso e perguntei “E agora, para onde vamos?”. Você disse que não sabia.