quarta-feira, 24 de julho de 2013

#15

"Em algum momento da nossa breve História, foi preciso sair do que é nosso, do próprio corpo, das coisas que se constata com olhos e os outros sentidos. Fosse para articular o esquema de caça daquela noite ou comentar que o céu estava mais azul do que há algumas semanas, fez-se necessário a criação de uma ferramenta para ir ao Outro: a linguagem.

Não é difícil perceber que rodeia em toda a Natureza um halo de inexpressividade. Por exemplo, nas feições embotadas de um sapo quando é devorado por uma cobra ou a de um cervo que, ao beber água, é surpreendido por uma onça e aceita o seu fim sem muito alarde. Nada ali precisa ser comunicado, as situações estão dadas. Somente a nós, humanos, cabe combinar uma série de gestos e expressões visuais ou sonoras (a linguagem) na tentativa de comunicar um dado momento – ou, neste momento, a dor.

Mas vamos ao seguinte exemplo: Supondo que uma pessoa, independente da causa ou modo, tivesse a sua mão ferida. Um ferimento leve, com o qual ela não se deixou morrer, mas também não tentou conviver e guardar pra si essa dor. Esta pessoa se utiliza da linguagem e elenca uma série de outras ferramentas e símbolos (movimentos, gestos, gritos, lágrimas), na busca por convencer os outros a se interessarem por aquele acontecido. É aqui, neste momento, onde reside algo que assombra e marca com ferro a solidão da nossa existência: o fato que, por mais que essa pessoa se empenhe e se utilize dos mais requintados elementos para descrever o tal acidente sofrido com a mão, ninguém nunca chegara perto de sentir o que essa pessoa sentiu. De certa forma, existe um grau de incomunicabilidade entre nós que nunca será superado." 

sábado, 13 de abril de 2013

#14


É preciso me reinventar. Matar a mãe e casar com o pai. Fazer um desenho da mãe e do pai juntos, numa praia, enquanto brinco de fazer castelos e me junto aos piratas. Aceitar meu corpo de mulher. Rejeitar meu corpo de mulher. Cortar ele em pedaços, colocar numa caixa de papelão e lançar ao mar. Molhar as canelas no mar. Fazer um sinal na testa e na nuca com a água do mar. Falar com estranhos numa língua que não domino. Desenhar esse estranho. Desenhar o corpo de mulher no mar. Desenhar o pai como herói – nunca foi. Andar de bicicleta – nunca fui. Deixar as pessoas irem. Ajoelhar, tocar a cabeça no chão e pedir por alguma coisa. Convidar minha mulher pra sentar à mesa – mesa para três. Pedir o vinho mais caro e brindar aos dois. Perfurar a mão do homem com o brinco da mulher. Brindar aos um. Engravidar desse um. Ter meu filho sozinho, em casa. Não mostrar pra ninguém. Cortar o cordão com os dentes, embrulhar tudo num pano preto e colocar num rio. Não contar pra ninguém. Furar o dedo com uma agulha e, com o sangue, escrever “volto logo” em um lenço. Cavar um buraco no chão. Enterrar o lenço. Deitar em cima do buraco e me masturbar. Acenar com a cabeça quando a mãe disse “sai desse chão frio”. Ir de joelhos até uma igreja. Voltar. Comprar uma dúzia de pratos pra casa nova. Desenhar a casa nova. Olhar sua foto e pedir perdão. Olhar sua foto e falar “me deixa”. Ligar pro seu número e perguntar “quem é você?”.